Reflexão

Sou mulher e viajo sozinha sim!

Quando decidi fazer minha volta ao mundo a pergunta que mais ouvi foi em relação aos custos da viagem, mas não muito atrás, disputando fortemente o primeiro lugar, veio o “mas você vai sozinha?“, seguido de todos os questionamentos e comentários do tipo “não é perigoso?”, “você não tem medo?”, “você é louca?”, “eu não tenho essa coragem”, “como uma mulher viaja assim sozinha?” e até “sua mãe deixou você ir sozinha? Eu vou falar com ela”.

Veja bem, isso não é uma crítica à essas pessoas. Muito pelo contrário, os comentários foram uma demonstração de preocupação e é sempre bom saber que tem muita gente por aí que se importa comigo. O ponto é: em pleno século XXI e depois de tantos sutiãs queimados, as pessoas ainda não aceitaram a independência e autonomia feminina.

Como você já deve ter percebido, esse não é exatamente um post sobre viagens, mas uma reflexão sobre o machismo na nossa sociedade, as vezes tão enraizado que nem percebemos. O assunto entrou em alta nesses últimos dias, depois das notícias das duas amigas argentinas que foram assassinadas após tentativa de abuso sexual enquanto mochilavam pelo Equador. O fato por si só já é terrível, mas o que reverberou foi a mídia culpar o acontecido por serem mulheres viajando sozinhas.

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Quem acompanha os assuntos viagem e feminismo (entre outros) sabe que muito já foi falado. Se estavam em duas, como estavam sozinhas? Elas tinham uma a outra. Que roupas estavam usando para isso ter acontecido? Por onde andavam? Se fossem homens a mídia teria outra postura e por ai vai. Um post da paraguaia Guadalupe Acosta sobre o assunto, escrito em primeira pessoa, viralizou nas redes sociais e expressa bem a indignação de muitos frente à postura da mídia. Segue abaixo um trecho:

“E só morta entendi que para o mundo eu não sou igual um homem. Que morrer foi minha culpa, que sempre vai ser. Enquanto que se o título dissesse foram mortos dois jovens viajantes as pessoas estariam oferecendo suas condolências e, com seu falso e hipócrita discurso de falsa moral, pediriam pena maior para os assassinos. Mas, por ser mulher, é minimizado. Torna-se menos grave porque, claro, eu procurei. Fazendo o que queria, encontrei o que merecia por não ser submissa, por não querer ficar em casa, por investir meu próprio dinheiro em meus sonhos. Por isso e por muito mais, me condenaram.”

(Ontem me mataram, por Guadalupe Acosta)

 

As mulheres tem uma lista enorme de cuidados para tomar quando vão viajar. Evitar andar sozinha a noite ou em lugares muito isolados, tomar cuidado com o que bebe, com quem sai, para onde vai, que roupa usa, prestar atenção ao seu redor, se está sendo observada ou seguida e essa relação ainda vai muito longe. Tudo isso pode parecer meio óbvio, mas se pararmos para analisar, é um absurdo que a gente perca a nossa liberdade, por vezes deixe de se divertir, de aproveitar o momento e de correr atrás dos nossos sonhos por situações que não deveriam acontecer.

As mulheres precisam se vestir de forma mais recatada em alguns lugares sim, mas o motivo não é evitar o assédio. Elas não podem tomar bebidas alcoólicas em alguns países, mas não é para deixar de ser fácil. Existe uma diferença muito grande entre respeitar a cultura local e não dar motivos para ser estuprada. Em alguns casos, há muito machismo enraizado na cultura local, mas isso não minimiza a diferença de uma coisa para a outra. Usar um decote mais ousado ou ficar mais alegre porque bebeu demais não dá o direito dos homens avançarem o sinal que não foi aberto à eles.

Nós, mulheres, aprendemos desde sempre que tipo de comportamento devemos ter para evitar algumas situações desagradáveis – você é uma mocinha e não pode sentar assim, nunca aceite bebidas de estranhos na balada, cuidado com o que faz senão vai ficar com fama de galinha, e bla bla bla -, mas desde quando os homens são ensinados que o corpo feminino não é propriedade pública e que fazer comentários inconvenientes ou botar a mão onde não foi autorizado não é nada legal?

E na tentativa de sempre procurar um culpado para essas situações, surgem os rótulos da mulher que é fácil e do homem que não tem noção dos seus limites, mas o buraco é um pouco mais embaixo. Tudo isso não é exatamente o problema, mas consequência da cultura da sociedade em que vivemos. Enquanto continuarmos aceitando que homem não chora, que meninas brincam de boneca e meninos de carrinho, que lugar da mulher é no fogão, que é o marido que sustenta a casa, que a esposa é responsável pela criação dos filhos, que salários são medidos por gênero e não por capacidade de entrega, que elas agradecem por não estarem solteiras porque têm medo de ficar pra titia etc etc etc, continuaremos alimentando a ideia de que mulheres devem ser submissas e que, inconscientemente, homens são superiores e acreditam que podem fazer o que quiserem com elas.

Pai Canyon - Tailandia
A libertadora experiência de viajar sozinha.

Concordo que mudar esse cenário não é nada fácil. Mudanças de cultura nunca são simples, mas de alguma forma é preciso começar. Grandes ações já existem – delegacia da mulher, Lei Maria da Penha, disque denúncia… -, mas se entendermos que as pequenas também geram resultados enormes, o que estamos esperando? Tente se policiar dentro de casa ao tomar decisões conjuntas e sem imposições, dividir tarefas e responsabilidades sem rótulos, quebrar preconceitos e paradigmas. E conforme isso for fazendo parte da sua rotina, compartilhe, multiplique. Se uma boa parte das pessoas tiverem essa consciência de seus atos, uma sociedade com direitos equilibrados, nem machista, nem feminista, será apenas um reflexo.

Fatos revoltantes como esse das argentinas no Equador infelizmente acontecem, notícias ruins sempre aparecem para intimidar, mas não deixemos que isso nos impeça de expandir nossos horizontes e de buscar nossos sonhos. Porque nós, mulheres, temos o direito de ir. E também de voltar íntegras, sem medos e sem traumas. Nesse Dia Internacional das Mulheres, vamos celebrar o respeito pelo sexo frágil (que, na verdade, não é tão frágil quanto dizem) não só nesta data comemorativa, mas em todos os demais dias do ano (e por todos os anos que se seguem).

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