América do SulPeru

Os Incas e sua cultura

Depois de passar alguns dias no Peru é impossível não aprender alguma coisa sobre os incas, principalmente se esses dias incluirem a cidade de Cusco.

Confesso que a cultura inca me impressionou muito. Já sabia de uma coisa ou outra, mas conhecer as ruínas que estão ao redor de Cusco, o Vale Sagrado, Machu Picchu e visitar os museus de Lima foi como uma imersão cultural em pouco tempo. Aprendi muito, voltei encantada e comentando cada detalhe com as pessoas que conversei depois.

O tempo todo aqui no blog falei cultura inca, mas na verdade o nome correto é cultura quechua (é bem provável que muitos não fossem entender se usasse esse termo). Inca era o nome dado para o “rei”, assim como na cultura egípcia o “rei” é chamado de faraó (e não falamos cultura faraó).

O início  da cultura quechua tem data de 1.300 d.C e foi formada pela junção, em sua maioria de forma pacífica, de várias outras culturas que são chamadas de pré-incas. As mais antigas são de cerca de 8.000 a.C. O interessante é que quando um povo dominava o outro, a cultura do dominador não era totalmente imposta ao dominado, as melhores técnicas eram absorvidas e mantidas. Com isso os quechuas, apesar de terem apenas pouco mais de 200 anos de história, possuíam tecnologias que foram desenvolvidas e melhoradas por mais de 9 mil anos.

O império era conhecido como Tawantinsuyo e teve seu auge por volta de 1450, quando dominaram a região que hoje é formada pela metade norte do Chile, metade oeste da Bolívia, noroeste da Argentina, toda a parte de costa e montanhas do Peru, praticamente todo o Equador e parte da Colômbia, ou seja, mais de 3.000 km de extensão. O responsável por essa grande expansão foi o inca Pachacutec, o nono rei inca. Tawantinsuyo significa 4 regiões, e assim era dividido o império: Antinsuyo, Continsuyo, Collasuyo e Chinchaysuyo. Bem no centro e fazendo fronteira com todas as regiões ficava a capital, que era responsável por toda a administração dos 3 mil km. Essa cidade se chamava Qosqo (que foi transformada pelos espanhóis em Cusco), palavra que significa umbigo ou centro. Eis o motivo de Cusco ser conhecida como o umbigo do mundo.

Mapa do Império Tawantisuyo
Mapa do Império Tawantisuyo

 

Os quechua eram grandes conhecedores de engenharia, astronomia, agricultura e muito religiosos. É incrível imaginar como tantas construções foram erguidas sem a ajuda das máquinas que temos hoje. Todas feitas de pedras que se encaixam perfeitamente, sem o uso de qualquer material para uní-las (como o cimento nos dias de hoje). Essas pedras eram enormes e pesadas, nem sempre da região da construção, às vezes eram trazidas de longe, de outra montanha, e não imagino como foram transportadas, uma vez que eles não tinham apoio de força animal (as lhamas eram domésticas, mas não fortes) e também não faziam o uso das rodas.

Além de técnicas de transporte, eles possuíam técnicas para quebrá-las, fazendo um furo nos locais exatos e os enchendo de água. No frio a água congelava, expandia e quebrava as pedras, quando o clima não permitia isso, eram colocados gravetos nos furos, que absorviam a água e expandiam também.

É fácil notar que nem todas as construções tem o mesmo estilo. Algumas tem pedras super polidas, já outras parecem um pouco mais rústicas. Essa diferença é por dois motivos: feitas em diferentes épocas, pois com o tempo os quechua aprimoraram as técnicas de construção, ou feitas com diferentes finalidades, por exemplo, templos, locais sagrados ou lugares importantes (como a moradia dos incas) eram feitos de forma mais precisa, perfeita e com pedras sempre muito polidas, já as casas do povo eram feitas com técnicas mais simples.

O que mais me impressionou nas construções é que elas eram feitas com um sistema à prova de terremotos (sim, há mais de 500 anos atrás!). As paredes são sempre inclinadas, para que a construção tenha uma base bastante sólida, mas o segredo está nas janelas, sempre em forma de trapézio. Muitas delas são cegas, ou seja, não tem vista (são como um buraco planejado na parede), e por elas a força dos tremores se dispersava. Em Qoricancha, o templo do sol no centro de Cusco, é possível ver isso claramente. Parte do templo foi destruída pelos espanhóis e no lugar foi construída uma igreja. Dois grandes terremotos atingiram o Peru nos últimos 500 anos, a igreja desabou (e já foi restaurada) e o templo está intacto até hoje.

As janelas cegas, em Pisac
As janelas cegas, em Pisac

 

O domínio da agricultura foi um ponto muito importante para o império e isso está incorporado na cultura peruana até agora. O Peru tem 3.800 tipos de batatas e tanta variedade se deve aos quechuas. Batatas eram alimentos venenosos para os humanos e eles cruzaram diferentes espécies até que ficassem comestíveis (parte dos 3.800 ainda é impróprio para o consumo). O mesmo foi feito com o milho, acho que não existe outro país com tantos tipos assim – roxo, amarelo, branco etc. O milho é muito usado na gastronomia e é uma delícia! Inclusive há um suco do milho roxo que se chama chicha morada.

As plantações eram feitas com o sistema de terraços, que escoavam a água em excesso e impediam a erosão do solo. A grande representação do domínio da agricultura é Moray, praticamente um laboratório, e infelizmente não tive tempo de visitar. Moray fica perto de Cusco e é formado por vários terraços de forma circular e em cada andar foram reproduzidos diferentes micro-climas, ou seja, em cada andar era cultivada uma espécie de alimento independente de estar na época certa, no clima certo, na altitude certa. Gênios, não?

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Outro alimento peruano que é bastante conhecido por ser uma rica fonte de proteínas é a quinua.

Diferentes tipos de milho presentes na gastronomia peruana. O branco (à direita) e o amarelo (em cima do alface).
Diferentes tipos de milho presentes na gastronomia peruana. O branco (à direita) e o amarelo (em cima do alface).

 

A comida tinha grande importância para essa cultura e era por ela que os incas controlavam o povo. Não existia dinheiro ou objetos com valor comercial nessa cultura, o sistema de trocas funcionava bem (algo do tipo: eu produzo batatas e você roupas. Ambos precisamos comer e nos vestir, então trocamos algumas batatas por peças de roupa) e rico era aquele que tinha água para beber e plantar e comida para matar a fome.

O sistema era bem estruturado. Todas as terras eram dos incas e uma parte era cedida para cada pessoa que nascesse. Terra significava ter local para plantar, ou seja, quanto mais filhos, mais terra e mais rica era a família, pois teria mais alimentos. Após a morte de alguém, seu pedaço de terra era devolvido para ser dado a outra pessoa e assim o sistema fluia. Em troca da terra, o povo pagava o inca com serviços comunitários e os impostos com força braçal. Dessa forma os incas garantiam a mão-de-obra para a construção das casas, templos, estradas etc.

As cidades eram organizadas de forma que os dutos de água sempre estavam na parte superior, assim como os depósitos de alimentos. Caso qualquer movimento iniciasse contra o governo, a água era cortada e o acesso aos depósitos impedido, assim os incas garantiam a ordem.

Depósito de alimentos na montanha em frente as ruínas de Ollantaytambo
Depósito de alimentos na montanha em frente as ruínas de Ollantaytambo

 

Outro ponto em que os quechua tinham grande conhecimento era a astronomia. Eles estudavam o movimento das estrelas, do sol e da lua, sempre com o objetivo de trazer melhorias para as plantações. Os solstícios de verão e inverno eram datas importantes, pois marcavam o início e término das épocas de plantio. A constelação cruzeiro do sul era considerada sagrada e está representada em diversos templos.

Além disso, ainda produziam cerâmicas e materiais feitos de metal como cobre, bronze, prata e ouro. Nunca trabalharam com o ferro, pois não tinham a tecnologia para atingir seu alto ponto de fusão, ou seja, não desenvolveram armas de guerra.

Os quechuas também não desenvolveram a escrita, por isso é muito difícil resgatar sua história. Basicamente ela está registrada em cerâmicas, peças decorativas, tecidos e nas ruínas. Porém, eles tinham um sistema de comunicação chamado quipu, que eram cordões cheios de nós. Por meio deles eram gravadas informações como quantidade de pessoas na cidade ou o estoque de alimentos. As cores, a quantidade de nós e a distância entre eles codificavam os dados.

Os quipus eram usados para a comunicação entre as cidades e com Cusco. Mensageiros corriam pelas trilhas incas para levar os “telegramas” de um lugar para outro.

Quipu, o sistema de registro de informação
Quipu, o sistema de registro de informação

 

Extremamente religiosos, os quechua tinham como principais deuses o sol e a lua. Toda a cultura e práticas são construídos em torno dos deuses. Os templos eram todos decorados com peças de ouro e prata, que não tinham qualquer valor comercial e seu uso se devia apenas às cores (o dourado tinha a cor do sol e o prateado a cor da lua).

Eles também tinham grande respeito à natureza e tentavam conviver em harmonia com ela. Os animais diziam muito e por isso também eram considerados sagrados. Nos museus é possível ver muitas peças com imagens de sapos e macacos, isso porque quando os sapos apareciam era sinal de que vinha chuva, ou seja, água para a plantação. Os macacos representavam a conexão do mundo terrestre com o mundo espiritual, pois subiam nas árvores e estavam mais perto dos deuses.

Uma história que achei muito interessante é a do esponjilus, uma concha rosada típica da região do Equador, de águas quentes. Quando ela aparecia na costa do Peru, geralmente fria, era sinal de que os deuses estavam bravos e o clima ia ficar louco, o que prejudicava as plantações. Hoje sabemos que esse fenômeno se chama El Niño e acontece regularmente a cada período de tempo, esquentando as águas geladas do Pacífico e causando mudanças climáticas. Em ocasiões como estas eram realizados rituais de sacrifícios para agradar os deuses, que envolviam lhamas, guerreiros e até crianças, porém sem uma conotação de sofrimento. Para as mães das crianças era um orgulho ter seus filhos escolhidos para serem sacrificados e agradar os deuses.

Outro aspecto da religião é que eles acreditavam em vida após a morte, por isso todos os mortos eram enterrados em posição fetal, prontos para renascerem, e junto com seus pertences, assim poderiam continuar sua vida quando voltassem. Alguns corpos eram mumificados, envoltos em muitos pedaços de pano e ficavam dentro de um boneco enorme (é possível ver as múmias no Museu Larco e no Museo del Oro, ambos em Lima). O guia disse que eles tratavam as múmias como um membro da família (na verdade elas eram, mas membros mortos) e elas eram retiradas do seu “local de descanso” para participar de festas, por exemplo, e depois devolvidas ao lugar.

Múmia (o corpo mumificado em posição fetal está dentro deste boneco até hoje)
Múmia (o corpo mumificado em posição fetal está dentro deste boneco até hoje)

 

Um dos principais símbolos da cultura é a chakana, ou cruz inca, totalmente simétrica, com um furo no meio e 3 níveis em suas laterais. As 4 pontas representam as 4 regiões do império Tawantinsuyo e o furo no meio, Cusco. Também pode ser interpretado como as 4 forças da natureza: água, fogo, ar e terra e o centro, a conexão entre todos eles. Os 3 níveis representam os 3 mundos: superior (mundo espiritual), terreno (mundo dos vivos) e inferior (mundo dos mortos), que por sua vez eram representados por animais: condor, puma e serpente, respectivamente. Esses animais também eram considerados sagrados.

A simetria também tem significado e representa a dualidade da cultura, equilíbrio, coisas opostas que dependem uma da outra, como sol e lua, dia e noite, homem e mulher etc. Essa dualidade é tão importante que aparece representada nas mais diversas ocasiões, como cerâmicas sempre feitas aos pares, a imagem da chakana pela metade cuja sombra completa seu formato, entre outros.

A chakana nem sempre aparece representada em sua totalidade, às vezes metade, às vezes apenas os 3 níveis. Aliás, tudo é feito em 3 níveis, principalmente quando tem relação direta com religião ou com a família inca.

Chakana, ou cruz inca (e as mãos do guia)
Chakana, ou cruz inca (e as mãos do guia)

 

Mas como uma cultura tão grande, estruturada e organizada se extinguiu? Uma série de fatores explica.

Por volta de 1532 houve uma guerra civil interna em Tawantinsuyo, dois irmãos disputavam o posto de próximo rei inca e o vencedor foi Atahualpa. Ao mesmo tempo a varíola se espalhou pela América Central e desceu para a região de Tawantinsuyo. Nessa mesma época chegaram os 168 espanhóis, com seus cavalos e armas, liderados por Francisco Pizarro, e encontraram uma sociedade totalmente enfraquecida pela doença e dividida pela guerra. Somado ao fato que os quechuas eram uma sociedade pacífica, sem cultura bélica e sem domínio de armas, a dominação européia não foi um grande desafio.

Os quechua foram catequizados e receberam grande influência em suas construções e artes. Nasceu a escola cusqueña de arte, com pinturas réplicas das européias, porém com indícios quechua (anjos com asas de pássaros, afinal eles não sabiam o que era um anjo; frutas tropicais pintadas nas mesas de jantar, pois eram as frutas que eles conheciam; um cuy, ou porquinho da índia, servido na santa ceia; e assim por diante). É possível ver muitos desses quadros na Catedral de Cusco e no Museu Histórico Regional.

Outra forma que os quechuas encontraram para preservar sua cultura no meio da católica foi disfarçar seus deuses nas imagens de santos. Um exemplo que está na Catedral de Cusco também é a imagem de uma madonna, cuja roupa tem forma triangular, sobre a cabeça há um véu branco e uma coroa dourada. O formato triangular representa uma montanha, o véu branco a neve e o dourado é o sol.

Mesmo depois de tantos anos, a cultura quechua ainda está viva na região das montanhas. Os nativos falam a língua quechua (que é uma língua oficial no Peru) e mantém tradições de vestimenta, danças etc. É uma pena que cada vez mais essa cultura está se perdendo, pois os jovens não tem interesse em aprendê-la (preferem estudar o inglês) e se mudam para as grandes cidades.

 

Eles eram incríveis, não? O que você conhece sobre os quechua? Deixe aqui nos comentários.

 

The Author

Patricia

Patricia

Patricia é educadora de formação, marketeira de profissão e viajante por paixão. Nascida em São Paulo, já chamou de casa o Japão, a Austrália, o Chile e tem o passaporte carimbado por uma volta ao mundo. Descendente de japoneses com orgulho e ativa na comunidade nikkei, participa de projetos para divulgação do Japão e para o fortalecimento da cultura japonesa no Brasil. Está sempre em busca de boas recordações para adicioná-las à sua bagagem de memórias.

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