Casamento com bonecas: o que há por trás disso?
Faz algum tempo que a notícia de um japonês que casou com uma holografia viralizou na internet. Uma rápida pesquisa no Google mostra que esse assunto não é algo novo e que casamentos com bonecas de silicone já acontecem há algum tempo, inclusive com cerimônias que custam alguns milhares de dólares.
As histórias são todas muito parecidas. Homens frustrados com relacionamentos anteriores (com mulheres de carne e osso de verdade) que encontram nas bonecas alguém que os entende, fazem companhia e satisfazem seus desejos. E os relacionamentos não são apenas sexuais. Eles levam as bonecas para passear, jantar, para piqueniques no parque e por ai vai. Bizzaro? Para nossa cultura brasileira é muito. Mas existe uma série de fatores que nos fazem entender um pouco melhor como os relacionamentos no Japão são.
Raízes culturais
Antes de falar das bonecas vou contar uma experiência que tive no Japão.
Durante a minha volta ao mundo eu passei pelo país e aproveitei para passar uns dias com uma amiga japonesa que conheci nessas andanças pelo mundo. Ela estava com um bebê de 1 mês e eu não queria incomodar muito, mas a receptividade japonesa enraizada na cultura não deixou que isso acontecesse.
Cheguei no começo da tarde e passamos o resto do dia juntas – eu, ela, a avó (mãe dela) e o bebê. No segundo dia, o pequeno ficou com a avó e o marido foi nos buscar para fazer um passeio. Estranhei quando ele cumprimentou a sogra e o filho dizendo “há quanto tempo”, mas não comentei nada. Conversando com minha amiga depois, ela disse que era a primeira vez que o pai via o filho depois do nascimento. É isso mesmo, fazia 1 mês que o pai não via o filho que tinha acabado de nascer (e provavelmente 1 mês que não via a mãe também).
Achei tudo isso muito diferente. A primeira impressão foi de um pai relapso, mas em nenhum momento ela reclamou da postura dele. Parecia ser algo muito normal para ela.
Em outra conversa que tivemos, ela comentou que estava procurando uma escolinha ou creche (algo do tipo, não entendi bem como funciona isso no Japão) para deixar o pequeno e poder voltar a trabalhar. Ela disse que tem 1 ano de licença maternidade, mas que se não encontrasse um local para deixar o filho, podia estender mais 12 meses. Sim, estamos falando de 2 anos de licença.
Essa impressão foi de um governo que se preocupa com a família e dá direitos para as mães criarem os filhos com mais conforto. Não existe a preocupação do “vou ser demitida quando voltar da licença e agora tenho um filho pequeno para cuidar”.
Anos depois fui descobrir que isso tudo tem muito a ver com a cultura e com as regras sociais.
Uma cultura baseada na hierarquia
Hierarquia é um valor que está profundamente enraizado na cultura japonesa, não só na relação de chefe – empregado, mas em todas as esferas de relacionamento. Para dar uma referência melhor, até a forma de falar muda conforme sua posição com a outra pessoa. Há conjugações verbais e vocabulários específicos para falar com pessoas superiores e inferiores e não seguir isso é considerado uma grade falta de respeito (particularmente, eu acho isso um dos pontos que mais dificulta o aprendizado do idioma japonês).
Dentro de casa isso também vale. O pai é sempre a figura mais importante da família, seguido pela mãe, depois filhos (homens, do mais velho para o mais novo) e as filhas vem por último. Quando os filhos atingem a maioridade, eles passam a ocupar uma posição superior a da mãe. Machista? Aos olhos dos brasileiros, podemos dizer que sim, o Japão é uma sociedade machista. Para os japoneses isso é apenas normal, é a forma como a sociedade funciona.
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A divisão das tarefas em uma família japonesa também é bem definida. No geral, os homens são responsáveis por trabalhar e trazer dinheiro para dentro de casa. Os filhos devem se dedicar exclusivamente aos estudos e às atividades da escola. As mulheres fazem todo o resto – cuidam da casa, criam os filhos, fazem as compras, a comida, a limpeza e são responsáveis por todo o controle financeiro. Isso quer dizer que o homem entrega todo o seu salário nas mãos da mulher e ela quem administra tudo, inclusive a quantidade de dinheiro que o marido tem para seu lazer próprio.
Trabalho em primeiro lugar
O valor que os japoneses dão para os estudos e para estudar em uma faculdade renomada é enorme, com casos de suicídio de quem não consegue notas suficientes para se classificar para uma das vagas. No mercado de trabalho não é diferente. O emprego é considerado algo de extrema importância na sociedade japonesa, sendo a prioridade número 1 da vida das pessoas. Acima de família, amigos, lazer, saúde etc.
Esse é um dos principais fatores que dá ao Japão a capacidade de se reconstruir. Uma cultura em que pessoas que se dedicam muito e trabalham por horas seguidas faz com que o país funcione perfeitamente. É por isso que o Japão refez cidades destruídas pelo tsunami em poucos dias. E foi assim que ele se reergueu depois da II guerra mundial.
Porém, em casos extremos essa dedicação ao trabalho é negativa, chegando a casos de impacto na saúde, inclusive causando morte. Já ouviu falar em karoshi? É um termo em japonês que pode ser traduzido como morte por excesso de trabalho. Parece ser absurdo, mas é realidade.
A pressão da sociedade japonesa é muito grande. Dizer que não aguenta a carga de trabalho é demonstrar fraqueza e ser julgado pelos colegas de trabalho. Não entregar suas tarefas, mesmo que elas sejam em volume muito além do que uma pessoa é capaz de produzir em horário comercial, é incompetência. Por isso eles seguem trabalhando sem limites. Não é raro encontrar casos de japoneses que trabalham em ritmo non-stop, com quantidade excessiva de horas extras, poucas horas de descanso e muita pressão. Os trabalhadores morrem de ataque cardíaco ou derrame por estresse.
O que as bonecas tem a ver com tudo isso?
Juntando as peças da hierarquia e do ritmo de trabalho, não é difícil concluir que é impossível assumir as tarefas de casa e do mundo corporativo ao mesmo tempo. A mulher precisa escolher entre carreira profissional e casamento.
Isso leva a um outro ponto que são as exigências das mulheres para entrar em um relacionamento: homens precisam trabalhar em empresas renomadas, com cargos e salários altos, afinal o homem será a única fonte de renda da casa.
Some tantas exigências ao fato do povo japonês ser mais frio e mais reservado e temos pessoas com dificuldade de se envolver em relacionamentos amorosos. Muitas pessoas ficam solteiras por opção (ou por falta de opção). E temos aqui um motivo para o desenvolvimento do mercado das bonecas.
Dos que se casam, nem sempre o relacionamento é o que consideramos saudável. A sobrecarga de trabalho tanto no corporativo quanto dentro de casa, pode afastar os casais. Alguns casamentos terminam e as esposas são trocadas por bonecas. Ou mesmo passam a conviver com as bonecas dentro da própria casa.
Essa matéria conta a história de amor com bonecas de silicone. Já o vídeo abaixo mostra o casamento com uma boneca virtual. O Google traz dezenas de outras histórias.
As histórias são bizarras? Eu concordo que são. A reflexão que queria trazer aqui é de como alguns aspectos da cultura resultam em comportamentos tão característicos. As bonecas são consequência disso.
Culturas são diferentes e nem sempre é fácil entendê-las. Principalmente quando crescemos em um meio que age e pensa de outra forma. Não é preciso concordar, mas respeito é sempre bem-vindo. Esses comportamentos que achamos estranhos têm motivos e compreender isso, além de enriquecedor, é o primeiro passo para criarmos uma sociedade mais gentil e que encara as diferenças de forma mais leve.
Vale dizer que esse relacionamento com bonecas são exceções, não é algo generalizado. E também que, apesar da hierarquia continuar sendo um forte valor da sociedade japonesa, algumas coisas estão pouco a pouco mudando. Ao meu ver, o Japão ainda tem um lado muito machista, mas mulheres no mercado de trabalho já é algo um tanto quanto comum.