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Caminho de Santiago – Reflexões

O Caminho de Santiago de Compostela é, como a maioria dos que já o fizeram dizem, especial. Muito! Caminhar distâncias que você jamais imaginou, por seu corpo, mente e espírito à prova, conhecer gente do mundo todo e conhecer a si mesmo. Pode parecer loucura, mas existe uma magia durante o trajeto e coisas acontecem para quem está aberto a recebê-las.

Eu fiz o caminho francês, que começa em Saint Jean Pied Port (França) e atravessa todo o norte da Espanha até Santiago de Compostela. Em seguida emendei a caminhada até Finisterra, o fim do mundo, para encontrar o Atlântico. No total, foram mais de 1.000 km percorridos 100% a pé, 36 dias sem entrar em um carro, ônibus, trem ou mesmo sem uma voltinha de bicicleta. Centenas de km percorridos com minhas próprias pernas e impulsionados por uma motivação que as vezes nem eu sabia de onde vinha. Também estiveram comigo o tempo todo a melhor bota do mundo nos meus pés (o caminho foi praticamente sem bolhas e sem dores) e minha mochila, com seus 10kg, nas costas.

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Hoje tenho nos meus arquivos a Compostela, o diploma que certifica a caminhada até Santiago, e também o documento que comprova que andei até Finisterra, sem contar a credencial em que fui colecionando carimbos durante todo o percurso. Mas o significado do caminho vai muito além e é impossível resumi-lo à apenas um pedaço de papel bonito. Mais importante que chegar ao destino final, Santiago de Compostela e Finisterra, é a jornada que te leva até lá. Cada um tem o seu próprio caminho, impressões e conclusões. Aqui compartilho com vocês as reflexões que tive durante a minha caminhada.

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Os certificados, a credencial cheia de carimbos e a vieira

Podemos dizer que o caminho francês se divide em 3 partes. A primeira é de Sain Jean Pied Port até mais ou menos Burgos, um trecho de montanhas, muitas subidas e descidas, um desafio para o corpo que ainda não está preparado para andar distâncias tão longas. A segunda parte, mais ou menos entre Burgos e Léon, é conhecida como meseta, o que dizem ser uma das etapas mais difíceis por ser uma região desértica, plana e aberta (sem proteção para sol, chuva e vento), com uma paisagem que pouco se altera e, com o corpo acostumado às montanhas, esse trecho se torna um verdadeiro desafio para a mente. E na última parte, de Léon à Santiago de Compostela, se encontram dois pontos importantes do caminho: a Cruz de Ferro e a subida do Cebreiro, além de finalizar com os últimos 100km cheio de “novos peregrinos”, o que faz desse trecho um desafio completo para o corpo, mente e espírito. O caminho até Finisterra é a oportunidade de aplicar os ensinamentos aprendidos.

Diz a lenda que ao começar o caminho você ganha um anjo que te acompanha e te protege o tempo todo, te auxilia nas tomadas de decisões e proporciona alguns “milagres” (e o caminho está cheio de histórias incríveis). O único porém é que a velocidade dele nunca é maior que a dos seus passos. No começo ele está bem perto, para te conhecer melhor e te ajudar nos obstáculos que as montanhas impõem. Na meseta o anjo te olha mais de longe, dando mais espaço para você trabalhar sua mente sozinho. Na parte final ele se aproxima novamente, afinal a evolução do espírito requer uma atenção especial. Algumas pessoas contratam um serviço de transporte de mochilas para não precisar carregá-las e andar mais leve, mas dessa forma a velocidade aumenta muito e o anjo não consegue as acompanhar. Aqueles que pegam taxi, ônibus ou trem em algum trecho também perdem seu anjo. E sem anjo, sem milagres.

Estar no caminho é mais que apenas andar com um destino definido (ou não). O trajeto está cheio de descobertas, de surpresas, de encontros e desencontros. Momentos especiais surgem a todo instante. Como após cada subida sacrificante, pois aquela vista de tirar o fôlego te espera como recompensa e você só pode tê-la se encarar cada passo montanha a cima. Em cada parada no bar para o almoço, um café ou mesmo apenas em busca de uma cadeira por 10 minutos, uma pessoa diferente te espera para compartilhar histórias, experiências e sorrisos. A cerveja gelada no fim de todas as tardes brinda a caminhada do dia, comemora cada etapa cumprida e o fato de estarmos cada vez mais perto do objetivo final. Os dias de chuva são necessários para darmos mais valor aos dias de céu azul e com o sol brilhando.

O buen camino desejado e recebido a todo instante se transforma em um código quase secreto. Apenas duas palavras que carregam um enorme significado e que só quem está há dias caminhando o entende. Ele te dá forças para seguir em frente quando o cansaço bate, abre portas para uma nova conversa e transmite o sentimento do espírito peregrino. E nós sabemos quando ele vem vazio, de alguém que não está na mesma vibe, mas mesmo assim desejamos, de coração, o melhor que o caminho pode oferecer.

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Buen Camino

A solidariedade presente no caminho contagia. Ela vem de completos desconhecidos que te oferecem um curativo quando você não sabe o que fazer com as bolhas do seu pé, do cara que monta uma tenda no meio do nada e oferece comida e bebida para os peregrinos à base de doação, da senhora que você nunca viu e te dá um de seus iogurtes no café da manhã, do mocinho que você conversou por 5 minutos durante o dia e te paga uma cerveja a noite ou das pessoas que se oferecem para cozinhar para um grupo de mais de 10 pessoas apenas para que todos possam compartilhar do mesmo momento juntos.

E são neles que você encontra seus novos amigos. Nessas pessoas que você conhece há poucos dias (ou poucas horas), mas que te recebem de braços abertos e com um sorriso no rosto na porta do albergue depois de um dia longo e cansativo e fazem todo o esforço valer a pena. É incrível a sensação de estar sozinha em um país em que não se conhece ninguém e depois de 2 ou 3 dias chegar em um bar, se sentir a pessoa mais popular da cidade e demorar 15 ou 20 minutos para chegar no balcão e pedir um café apenas porque você quer cumprimentar e conversar com todo mundo que você conhece. Antes que você perceba, essa relação de amizade se torna incrivelmente maior e uma família se forma. Sim, eu tenho a minha camino family.

Inevitavelmente, o caminho vai te separar das pessoas. Cada um tem o seu motivo para estar lá, o ritmo das passadas e a resistência do corpo varia de um para o outro e nem todos chegam à Santiago, sem falar nos que pegam trens ou ônibus em alguns trechos. Assim, o caminho te força a aproveitar o momento presente com cada um, pois você nunca sabe se haverá uma próxima vez. Do mesmo jeito que ele une pessoas de forma rápida e intensa, ele também as separa. E como é difícil deixar algumas pessoas partirem. Mas o lugar tem sua magia e quando menos se espera ele cruza caminhos novamente. E assim também é a vida, né? Pessoas chegam e partem, algumas a gente tem um carinho especial, outras levam um pedacinho de nós quando se vão e nós nunca sabemos o dia de amanhã e as surpresas que o destino prepara para gente.

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Minha camino family (na verdade, parte dela)

O caminho é cheio de metáforas. Cada um tem a sua jornada, assim como cada um tem sua vida e é responsável por cada escolha feita. Vale prestar atenção em como você lida com as dificuldades que aparecem durante a caminhada, pois provavelmente a reação aos problemas na “vida real” é a mesma. Tem os que apenas reclamam e procuram desculpas, seja porque está chovendo, porque os pés doem, porque o percurso do dia é chato, por qualquer outro motivo. Tem os que se superam a cada dia e enxergam oportunidade em cada passo dado quando as pernas dizem para parar, em cada sorriso compartilhado naquele dia em que acordou de mau humor, em cada sentimento desnecessário que foi deixado para trás. Tem os que estudam o trajeto em cada detalhe e os que apenas vão para onde o caminho os levar. É fácil julgar e esquecer que cada um tem o seu caminho, cada um tem sua história de vida, assim como também é fácil encontrar pessoas que te surpreendem (positiva ou negativamente). A maior força que move as pessoas não está nas pernas, mas sim na mente (ou seria no coração?).

O percurso é sempre sinalizado pelas conchas e pelas setas amarelas. Basta segui-las, ou não. É possível se perder se a atenção falhar ou escolher o trajeto mais longo nas bifurcações. Não há certo nem errado, apenas caminhos diferentes. E quais são as setas que guiam a sua vida? Você tem prestado atenção aos sinais que aparecem? Tem os seguido? Se perder ou tomar a estrada mais longa nem sempre é a pior escolha e, independente de onde você for, há algo para ser aprendido.

A mochila que vai nas costas representa o fardo que carregamos na vida. Algumas mais leves, algumas menores, algumas mais confortáveis que as outras, mas todas com algum peso. O que eu carrego dentro dela é decisão minha, eu escolhi o que levar. E o que fazer quando a mochila pesa demais? O que fazer quando não damos conta do fardo que carregamos na vida? A solução se chama desapego.  Se desfaça do supérfluo para ter com você apenas o que realmente precisa. Nem sempre é fácil deixar algumas coisas para trás, principalmente as que tem valor emocional. Tem quem utilize o serviço de transporte de mochilas para não precisar carregá-las (e perdem o anjo). Nada contra, mas apenas vejo a oportunidade de aprendizado que foi desperdiçada, como se o seu fardo fosse delegado para outra pessoa suportar.

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Para onde o caminho me levar, eu vou.

A maior representação do desapego é a Cruz de Ferro. Você deve levar de casa uma pedra e carregá-la dentro da mochila por mais de 600km. Ela pode ser do tamanho que você quiser e simboliza o peso desnecessário que carregamos. Ao chegar na Cruz de Ferro, você deixa a pedra e segue em frente, o peso que não precisa fica para trás e a vida continua, de forma mais leve. Além de pedras, encontrei muitas fotos, cartas e objetos diversos. Uma senhora estava fumando lá e me disse: “Este é o último cigarro da minha vida”, logo em seguida o apagou, jogou o maço na base da cruz e continuou seu caminho. O desapego vai muito além do material e, por fim, entendemos que o essencial para a vida cabe apenas em uma mochila e no coração, todo o resto é desnecessário. E quanto mais leve a mochila, o coração e a vida, melhor será. 😉

Outro ponto importante é a subida do Cebreiro, uma das partes mais temidas de todo o caminho. Um pouco antes de chegar à sua base as pessoas manifestam tendinites, dor nos joelhos, os sapatos começam a apertar, a mochila pesa mais. Os taxistas comemoram e os pontos de ônibus ficam mais cheios. As vezes é preguiça ou desculpa, mas na maioria a dor é real mesmo. Já ouviu falar em dor psicológica? É o corpo manifestando medo, insegurança, sentimento de incapacidade etc.

É importante escutar, entender e respeitar o seu corpo. As dores e as bolhas são a representação física dos obstáculos que surgem na vida. Se pararmos para pensar, todos os problemas existem apenas na nossa cabeça, na forma como encaramos e lidamos com cada situação. Alguns se zangam, reclamam, remoem, adoecem, amargam a vida e/ou culpam a tudo e a todos, já outros sabem melhor como controlar suas próprias emoções, como digerir cada situação, como não se envolver emocionalmente e deixam partir o desnecessário (olha o desapego aqui de novo).

E quando estamos bem com a gente mesmo, tudo parece ficar bem também. O exterior é um reflexo do nosso interior. Depois de um tempo percebi o quão confortável é pisar na lama e como os trechos de floresta parecem ter saído de um conto de fadas. Um dos maiores índices de pessoas que pegam ônibus é entre Burgos e Léon, justamente para fugir da meseta, a parte chata e entediante que desafia a mente. Eu, particularmente, achei esse um dos trechos mais bonitos do caminho todo e por ser plano, foi onde fiz as maiores quilometragens por dia (olha aqui a superação).

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A meseta, plana e com paisagem constante

Cada dia andando é um novo desafio e uma das grandes lições que o caminho ensina é viver um dia de cada vez. Viver no momento presente. Afinal, se lá no começo pensarmos em caminhar 900km fica fácil desistir, mas 20 ou 30km por dia parece ser possível. Ou 8km até o bar e mais 8 até o próximo e assim por diante. E assim aproveitamos o caminho a cada passo, a cada paisagem, a cada sensação. E não importa quem anda mais, quem vai mais rápido ou quem chega primeiro, afinal o caminho não é uma corrida e o mais importante é a nossa jornada interior.

O caminho é intenso, é mágico, é surpreendente. Histórias de vida se cruzam e cada uma delas traz um novo aprendizado e reflexão. Não importa de onde você vem, qual sua religião, quantos anos tem ou o tamanho da sua conta bancária. Adolescentes criam laços com pessoas de idade, mega executivos brindam com aqueles que tem uma história de vida difícil. Aqui todos caminham pelo mesmo lugar e com o mesmo destino. A vida cheia de cobranças externas, pressão do trabalho e imposições sociais parece ficar distante, máscaras e rótulos caem e você pode ser apenas você mesmo.

Escute o chamado do caminho e vá com o coração e a mente abertos, a alma livre e a mochila leve. Aprecie a paisagem, mas não deixe de olhar para dentro de si mesmo. Enfrente as dificuldades que aparecerem e deixe o caminho te surpreender. Encontre em cada conversa, em cada sorriso, em cada descoberta, em cada obstáculo superado, o milagre que o seu anjo está lhe proporcionando. No final, você verá que pode muito mais do que imagina ser capaz.

A experiência de andar pelo caminho deixa marcas profundas. Como me disseram, uma vez peregrino, você é peregrino para sempre, e agora os aprendizados devem ser aplicados no camino de la vida.

Buen Camino

 

 

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