Reflexão

Asiáticos, precisamos falar sobre o racismo

A morte do americano negro George Floyd, em 25 de maio de 2020, colocou a luta contra o racismo em pauta no mundo todo. Movimentos antirracistas, protestos nas ruas e diversas manifestações nas redes sociais estão em evidência. Ativistas negros ganharam muito destaque nos últimos dias.

É claro que a forma como Floyd morreu é triste. Pra não dizer horrorosa. E isso gerou uma repercussão que eu considero extremamente positiva, pois trouxe a tona uma luta de anos que não aparecia dessa forma. Os negros ganharam mais espaço para falar. Tão importante quanto, é a reflexão que isso trouxe para quem não faz parte dessa minoria e não entende o que é sofrer preconceito diariamente. Eu me incluo nessa lista.

Com toda certeza, eu não sou a melhor pessoa para falar desse assunto. Estou em um processo de aprendizado (bastante inicial, eu diria). Mas toda essa situação de racismo me incomoda. E incomoda mais ainda pelo fato de eu ser descendente de japoneses.

O que tem uma coisa a ver com a outra? Isso exige um desencadeamento de explicações que vou tentar fazer abaixo. Mais uma vez, eu não sou especialista nesse assunto. Se eu estiver falando qualquer bobagem, deixe um comentário, me mande um email e me ajude a aprender mais sobre o tema. Todos saímos ganhando com isso. =)

Os negros no Brasil

Se a gente for relembrar as aulas história da escola, os africanos chegam no Brasil como escravos no século XVI. Só isso já nos diz muito. Escravos eram comprados e vendidos, eram pessoas tratadas como mercadorias. Trabalhavam obrigados, em condições desumanas a troco de se manterem vivos. Eram considerados inferiores, rebaixados socialmente e em todos os outros aspectos. Triste. Muito triste.

Imagine a auto-estima e diversas outras coisas que envolvem a personalidade de uma pessoa que passa uma vida ouvindo e acreditando que é inferior e que não tem direitos. Agora imagine o impacto disso reproduzido em um grupo inteiro por gerações. Foram mais de 3 séculos de história da escravidão no Brasil. Uma história muito difícil e que deixou muitas sequelas.

Tudo isso se enraizou na estrutura da nossa sociedade. Os reflexos são vistos e vividos pelos negros até hoje, mesmo passado mais de um século da abolição da escravatura. Veja a pirâmide sócio-econômica do Brasil e onde está a concentração dos negros. O mesmo vale para o nível de escolaridade. E para a ascensão na carreira profissional.

Além disso, foi criada uma imagem um tanto negativa que coloca todos eles em uma mesma caixinha. Já falamos dessa tal caixinha em outro post. O critério para entrar nessa caixinha é a cor da pele. A partir disso, julgamos a pessoa pela sua cor, atribuindo as características dessa rotulação criada pela sociedade e desconsiderando sua história, formação, crenças, valores etc. Essa avaliação de uma pessoa utilizando conceitos pré-estabelecidos (pré-conceitos) para um grupo e ignorando sua individualidade é uma droga.

Todo tipo de conteúdo falando disso ganhou destaque esses dias e um em especial me marcou bastante. Era um vídeo que mostrava pais negros ensinando seus filhos como agir caso fossem parados pela polícia. Orientações de levantar as mãos, avisar que não está armado, não retrucar e apenas seguir as instruções, avisar cada movimento que será feito… Me impressionou ver que crianças e adolescentes negros precisam ser orientados para esse tipo de situação, mesmo sem ter atitudes que justifiquem. Nunca passou pela minha cabeça que esse tipo de instrução fosse necessária. Eu nunca passei por isso. Guarde esse ponto que mais pra baixo vamos voltar nele.

Essa é a luta diária dos negros. Desconstruir esse estereótipo que foi criado. “Brigar” por um lugar mais justo, que não privilegie os brancos. Uma luta que envolve não só os próprios negros, mas a mudança de pensamento de toda uma sociedade. Uma luta contra o racismo que está muito longe de chegar ao fim.

Os japoneses no Brasil

Os japoneses também têm sua história de chegada no Brasil e sua luta. Quero deixar claro desde já que são coisas diferentes e uma não se compara a outra.

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Também voltando na história, o Japão viva uma crise econômica fortíssima pós revolução Meiji com altos níveis de desemprego e fome. O governo precisava fazer alguma coisa com a população. Já o Brasil estava em seu momento pós abolição da escravidão e procurava mão de obra para as fazendas. Deu match.

Eles chegam para trabalhar nas fazendas de café. As condições não foram favoráveis e a adaptação, muito difícil. O período da II GM foi um capítulo de grande discriminação, perseguição e sofrimento. É uma história muito mais recente (112 anos este ano, 2020), com muitos obstáculos sobrepostos, muita superação, conquistas e construída com muita luta também. História dos meus antepassados, que faz parte de mim e merece seu reconhecimento. Mais uma vez, negros e japoneses chegam ao Brasil em contextos diferentes e a ideia não é definir qual é o mais difícil. Não vamos comparar as histórias.

Os rótulos também foram criados para os japoneses. Também sofremos racismo (lembrando que racismo é o preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, geralmente considerada inferior), também fomos colocados em caixinhas. A grande diferença é que algumas caixinhas são um tanto quanto confortáveis de estar.

Elas vêm disfarçadas de elogios. O japonês é bom de matemática, inteligente, responsável, esforçado, confiável, honesto… e por ai vai. Voltando a ideia de que o critério para entrar em caixinhas com conceitos pré-determinados é a cor da pele (amarela) ou, nesse caso, o fenótipo fique mais fácil de entender, estamos criando mais uma vez um julgamento sem considerar toda a história que cada um carrega.

“Primeiro lugar no vestibular? Tinha que ser um japonês!”. Que atire a primeira pedra quem nunca pensou ou ouviu isso. E assim, o mérito dessa conquista foi para a genética e todo o esforço, anos de dedicação e noites em claro estudando foram desconsiderados. O reconhecimento é merecido, mas que tal valorizarmos os pontos certos?

Essa imagem positiva foi construída a partir dos valores que os imigrantes japoneses trouxeram consigo do Japão e aplicaram em sua vida aqui. Isso foi passado de geração para geração e é sim motivo de orgulho para a comunidade japonesa no Brasil. Mas vamos lembrar que existe uma grande diferença entre atribuir características para um grupo de pessoas e rotular uma única pessoa com esses atributos, desconsiderando sua individualidade. Quer um exemplo? Eu me identifico com várias dessas caixinhas, mas jamais deixe a conta do restaurante para eu dividir porque eu vou errar. Matemática não é o meu forte. E ainda há uma pressão sobre isso. “Japonesa que não sabe fazer conta? Nunca vi.”

Vale ainda dizer que até agora falamos das caixinhas disfarçadas de elogios, mas nem todas são positivas. Tem os rótulos negativos também, mas vamos deixar esse assunto para um outro momento.

Os japoneses e o racismo anti-negro

O que tem uma coisa a ver com a outra? Você segue se perguntando isso?

O Brasil é formado por diferentes etnias e os asiáticos fazem parte dessa mistura. O que acontece na prática é que na grande maioria das vezes, somos colocados na caixinha dos brancos, com todos os privilégios que eles têm, com o adicional daquelas caixinhas que vêm disfarçadas de elogio. É um privilégio em cima do outro (ainda no exemplo do vestibular, sempre tem o japonês que vai “roubar a vaga de alguém”. Veja que vestibular já é um local para os privilegiados). Aparentemente, isso parece ser bom, mas se alguém está sendo duplamente beneficiado, deve ter outro alguém está pagando essa conta. E adivinha quem é?

Um parênteses aqui. Há situações que saímos da caixinha dos brancos para entrar em outras caixas. Isso acontece quando os rótulos negativos aparecem ou em casos que convém, vide a discriminação que temos com os brasileiros asiáticos e o corona vírus, quando entramos na caixinha dos chineses, que é a mesma dos asiáticos, afinal é tudo igual (contém doses de ironia, caso você não tenha entendido).

Percebeu que desde o começo desse texto eu reforcei várias vezes que são histórias e lutas diferentes e que não é uma comparação? Quando essas histórias são colocadas lado a lado surge um termo conhecido como a minoria modelo. Os japoneses são vistos como os não brancos (aqui convém) que deram certo, que também vieram para trabalhar nas fazendas, se esforçaram e conseguiram ascender socialmente. Somos o exemplo que deve ser seguido por outros grupos étnicos. E isso é bom, né? É claro que não. Isso reforça o racismo anti-negro e anula a luta deles, como se o racismo estrutural não existisse. “Alguém já viu japonês pedindo esmola? É uma raça que tem vergonha na cara”. Já ouviu isso? Essa fala é do nosso presidente e reforça esse discurso que nem deveria existir. Essa matéria da Carta Capital explica com mais detalhes a minoria modelo, conceito que pode ser extendido para os chineses e coreanos também.

Vale aqui um outro parênteses. Essa imagem positiva dos japoneses e o reconhecimento dos esforços e das conquistas não surgiram do nada. Tudo isso foi construído ao longo dos anos e não deve ser desvalorizado. Essa história não deve ser apagada e ela é motivo de orgulho sim. Eu tenho total orgulho de carregar isso comigo e conheço muitos outros nikkeis que sentem o mesmo. O que jamais deve acontecer é isso ser usado para rebaixar outras raças, outras culturas, outras pessoas. Repito mais uma vez que são histórias diferentes e não devem ser comparadas.

Infelizmente, isso aparece de forma meio que inconsciente na sociedade e espero, de verdade, que todo esse movimento que está acontecendo incentive uma reflexão coletiva para desconstruir esse conceito.

Lembra da história dos pais negros orientando os filhos sobre como agir caso fossem parados pela polícia? Esse vídeo abaixo complementa muito bem essa situação e mostra de forma descarada o conceito da minoria modelo aplicado na prática. Veja que ele é de 2017, ou seja, essa não é uma discussão recente.

Então, o que fazer?

Na verdade, essa é a minha pergunta para você. Como disse lá no começo, estou em um processo de aprendizado que é bastante recente, mas acredito que esse movimento é conjunto. Fato é que eu não me sinto confortável com isso, assim como muitas outras pessoas, o que é um sinal de que há muito para ser trabalhado.

Reforço novamente que são histórias diferentes, cada uma com sua luta. Ambas devem ser respeitada, porém não comparadas. Os negros estão em uma luta que eu nunca vou entender, porque eu não estou e nunca estarei no lugar deles. Mas podemos dar voz a eles, ouvir suas histórias e dores, para pouco a pouco contribuir para desconstrução de conceitos e preconceitos.

Nós vivemos em uma sociedade em que o racismo é realidade e fomos ensinados a ser assim desde pequenos. O primeiro passo é reconhecer e aceitar isso, para que a mudança dentro de nós comece. É um processo longo, difícil e dolorido que está longe de chegar ao fim. Não deixemos que a morte do George, do Miguel, do João e de tantos outros seja em vão.